A característica mais importante da Bíblia não é sua
estrutura e sua forma, mas o fato de ter sido inspirada por Deus. Não se deve
interpretar de modo errôneo a declaração da própria Bíblia a favor dessa
inspiração. Quando falamos de inspiração, não se trata de inspiração poética,
mas de autoridade divina. A Bíblia é singular; ela foi literalmente
"soprada por Deus". A seguir examinaremos o que significa isso.
1. Uma definição de inspiração
Embora a palavra inspiração seja usada apenas uma vez
no Novo Testamento (2Tm 3.16) e outra no Antigo (Jó 32.8), o processo pelo qual
Deus transmite sua mensagem autorizada ao homem é apresentado de muitas
maneiras. Um exame das duas grandes passagens a respeito da inspiração
encontradas no Novo Testamento, poderá ajudar-nos a entender o que significa
a inspiração bíblica.
2. Descrição
bíblica de Inspiração
Assim escreveu Paulo a Timóteo: "Toda Escritura é
divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para
corrigir, para instruir em justiça" (2Tm 3.16). Em outras palavras, o
texto sagrado do Antigo Testamento foi "soprado por Deus" (gr., theopneustos)
e, por isso, dotado da autoridade divina para o pensamento e para a vida do
crente. A passagem correlata de 1Coríntios 2.13 realça a mesma verdade. Disto
também falamos", escreveu Paulo, "não com palavras de sabedoria
humana, mas com as que o Espírito Santo ensina, comparando as coisas
espirituais com as espirituais." Quaisquer palavras ensinadas pelo
Espírito Santo são palavras divinamente inspiradas.
A segunda grande passagem do Novo Testamento a respeito da
inspiração da Bíblia está em 2Pedro 1.21. "Pois a profecia nunca foi
produzida por vontade dos homens, mas os homens santos da parte de Deus falaram
movidos pelo Espírito Santo." Em outras palavras, os profetas eram homens
cujas mensagens não se originaram de seus próprios impulsos, mas foram
"sopradas pelo Espírito". Pela revelação, Deus falou aos profetas de
muitas maneiras (Hb 1.1): mediante anjos, visões, sonhos, vozes e milagres.
Inspiração é a forma pela qual Deus falou aos homens mediante os
profetas. Mais um sinal de que as palavras dos profetas não partiam deles
próprios, mas de Deus é o fato de eles sondarem seus próprios escritos a fim de
verificar "qual o tempo ou qual a ocasião que o Espírito de Cristo, que
estava neles, indicava, ao dar de antemão testemunho sobre os sofrimentos que a
Cristo haviam de vir, e sobre as glorias que os seguiriam" (1 Pe 1.11).
Fazendo uma combinação das passagens que ensinam sobre a
inspiração divina, descobrimos que a Bíblia é inspirada no seguinte sentido:
homens movidos pelo Espírito, escreveram palavras sopradas por Deus, as quais
são a fonte de autoridade para a fé e para a prática cristã. Vamos a seguir
analisar com mais cuidado esses três elementos da inspiração.
3. Definição
teológica da inspiração
Na única vez em que o Novo Testamento usa a palavra inspiração,
ela se aplica aos escritos, não aos escritores. A Bíblia é que é inspirada,
e não seus autores humanos. O adequado, então, é dizer que: o produto e
inspirado os produtores não. Os autores indubitavelmente escreveram e Falaram
sobre muitas coisas, como, por exemplo, quando se referiram a assuntos
mundanos, pertinentes a esta vida, os quais não foram divinamente inspirados.
Todavia, visto que o Espírito Santo, conforme ensina Pedro tomou posse dos
homens que produziram os escritos inspirados, podemos, por extensão,
referir-nos à inspiração em sentido mais amplo. Tal sentido mais amplo inclui o
processo total por que alguns homens, movidos pelo Espírito Santo,
enunciaram e escreveram palavras emanadas boca do Senhor; e, por isso mesmo, palavras
dotadas da autoridade divina. É um processo total de inspiração que contém os
três elementos essenciais: a causalidade divina, a mediação profética e a
autoridade escrita.
a) Causalidade divina.
Deus é a Fonte Primordial da inspiração da Bíblia. O elemento
divino estimulou o elemento humano. Primeiro Deus falou aos profetas e, em
seguida, aos homens, mediante esses profetas. Deus revelou-lhes certas verdades
da fé, e esses homens de Deus as registraram. O primeiro fator fundamental da
doutrina da inspiração bíblica, e o mais importante, é que Deus é a fonte
principal e a causa primeira da verdade bíblica. No entanto, não é esse o único
fator.
b) Mediação profética.
Os profetas que escreveram as Escrituras não eram autômatos.
Eram algo mais que meros secretários preparados para anotar o que se lhes
ditava. Escreveram segundo a intenção total do coração, segundo a consciência
que os movia no exercício normal de sua tarefa, com seus estilos literários e
seus vocabulários individuais. As personalidades dos profetas não foram
violentadas por uma intrusão sobrenatural. A Bíblia que eles produziram é a
Palavra de Deus, mas também é a palavra do homem. Deus usou personalidades
humanas para comunicar proposições divinas. Os profetas foram a causa imediata
dos textos escritos, mas Deus foi a causa principal.
c) Autoridade
escrita.
O produto final da autoridade divina em operação por meio dos
profetas, como intermediários de Deus, é a autoridade escrita de que se reveste
a Bíblia. A Escritura "é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar,
para repreender, para corrigir, para instruir em justiça". A Bíblia é a
última palavra no que concerne a assuntos doutrinários e éticos. Todas as
controvérsias teológicas e morais devem ser trazidas ao tribunal da Palavra
escrita de Deus. As Escrituras receberam sua autoridade do próprio Deus, que
falou mediante os profetas. No entanto, são os escritos proféticos e não os
escritores desses textos sagrados que possuem e retêm a resultante autoridade
divina. Todos os profetas morreram; os escritos proféticos prosseguem.
Em suma, a definição adequada de inspiração precisa ter três
fatores fundamentais: Deus, o Causador original, os homens de Deus, que
serviram de instrumentos, e a autoridade escrita, ou Sagradas Escrituras, que
são o produto final.
4. Algumas
distinções importantes
a) A inspiração em contraste com a revelação e a iluminação
Há dois conceitos inter-relacionados que nos ajudam a
esclarecer, pela contraposição, o que significa inspiração. São eles a
revelação e a iluminação. Revelação diz respeito à exposição da verdade.
Iluminação, à devida compreensão dessa verdade descoberta. No entanto, a
inspiração não consiste nem em uma, nem em outra. A revelação prende-se à
origem da verdade e à sua transmissão; a inspiração relaciona-se com a recepção
e o registro da verdade. A iluminação ocupa-se da posterior apreensão e
compreensão da verdade revelada. A inspiração que traz a revelação escrita aos
homens não traz em si mesma garantia alguma de que os homens a entendam. É
necessário que haja iluminação do coração e da mente. A revelação é uma
abertura objetiva; a iluminação é a compreensão subjetiva da revelação; a
inspiração é o meio pelo qual a revelação se tornou uma exposição aberta e
objetiva. A revelação é o fato da comunicação divina; a inspiração é o meio; a
iluminação, o dom de compreender essa comunicação.
b) Inspiração dos originais,
não das cópias
A inspiração e a conseqüente autoridade da Bíblia não se
estendem automaticamente a todas as cópias e traduções da Bíblia. Só os
manuscritos originais, conhecidos por autógrafos, foram inspirados por Deus. Os
erros e as mudanças efetuados nas cópias e nas traduções não podem ser
atribuídos à inspiração original. Por exemplo, 2Reis 8.26 diz que Azarias tinha
22 anos de idade quando foi coroado rei, enquanto 2Crônicas 22.2 diz que tinha
42 anos. Não é possível que ambas as informações estejam corretas. O original é
autorizado; a cópia errônea não tem autoridade. Outros exemplos desse tipo de
erro podem encontrar-se nas atuais cópias das Escrituras (e.g., cf. 1Rs 4.26 e
2Cr 9.25). Portanto, uma tradução ou cópia só é autorizada à medida que
reproduz com exatidão os autógrafos.
Veremos posteriormente até que ponto as cópias da Bíblia são
exatas (cap. 15), segundo a ciência da crítica textual. Por ora basta-nos
observar que o grandioso conteúdo doutrinário e histórico da Bíblia tem sido
transmitido de geração a geração, ao longo da história, sem mudanças nem perdas
substanciais. As cópias e as traduções da Bíblia, encontradas no século xx, não
detêm a inspiração original, mas contêm uma inspiração derivada, uma
vez que são cópias fiéis dos autógrafos. De uma perspectiva técnica, só os
autógrafos são inspirados; todavia, para fins práticos, a Bíblia nas línguas de
nossa época, por ser transmissão exata dos originais, é a Palavra de Deus
inspirada.
Visto que os originais não mais existem, alguns críticos têm
objetado à inerrância de autógrafos que não podem ser examinados e nunca foram
vistos. Eles perguntam como é possível afirmar que os originais não continham
erro, se não podem ser examinados. A resposta é que a inerrância bíblica não é
um fato conhecido empiricamente, mas uma crença baseada no ensino da Bíblia a
respeito de sua inspiração, bem como baseada na natureza altamente precisa da
grande maioria das Escrituras transmitidas e na ausência de qualquer prova em
contrário. Afirma a Bíblia ser a declaração de um Deus que não pode cometer
erro. É verdade que nunca se descobriram os originais infalíveis da Bíblia, mas
tampouco se descobriu um único autógrafo original falível. Temos, pois,
manuscritos que foram copiados com toda precisão e traduzidos para muitas
línguas, dentre as quais o português. Portanto, para todos os efeitos de
doutrina e de dever, a Bíblia como a temos hoje é representação suficiente da
Palavra de Deus, cheia de autoridade.
c) Inspiração do ensino,
mas não de todo o conteúdo da Bíblia
Cumpre ressaltar também que só o que a Bíblia ensina foi
inspirado por Deus e não apresenta erro; nem tudo que está na Bíblia
ficou isento de erro. Por exemplo, as Escrituras contêm o relato de muitos atos
maus, pecaminosos, mas de modo algum a Bíblia os elogia; tampouco os recomenda.
Ao contrário, condena essas práticas malignas. A Bíblia chega a narrar algumas
das mentiras de Satanás (e.g., Gn 3.4). Portanto, a simples existência dessa
narração não significa que a Bíblia ensine serem verdadeiras essas mentiras. A
única coisa que a inspiração divina garante aqui é que se trata de um registro
verdadeiro de uma mentira satânica, de uma perversidade real de Satanás.
Às vezes não está perfeitamente claro se a Bíblia registra
apenas um mero relato do que alguém disse ou fez, ou se ela está ensinando que
devemos proceder de igual forma. Por exemplo, estará a Bíblia ensinando que
tudo quanto os amigos de Jó disseram é verdade? Seriam todos os ensinos daquele
homem "debaixo do sol", em Eclesiastes, ensino de Deus ou mero
registro fiel de pensamentos vãos? Seja qual for a resposta, o estudante da
Bíblia é admoestado a não julgar verdadeiro tudo quanto a Bíblia afirma só
por ter aparência de verdade. O estudante da Bíblia precisa procurar seu
verdadeiro ensino, sem atribuir verdade a tudo quanto está escrito em
suas páginas. De fato, a Bíblia registra muitas coisas que ela de modo
algum recomenda, como a asserção: "Não há Deus" (Sl 14.1). Em
todas as passagens, o que a Bíblia está declarando deve ser estudado com
cuidado, a fim de se apurar o que ela está ensinando na verdade. Só o que a
Bíblia ensina é que é inspirado, e não todas as palavras relacionadas a todo o
seu conteúdo.
Resumindo, a Bíblia é um livro incomum. Compõe-se de dois
testamentos formados de 66 livros, os quais declaram ou comprovam a inspiração
divina. Com inspiração queremos dizer que os manuscritos originais da Bíblia
nos foram concedidos pela revelação de Deus e, exatamente por isso, detêm a
absoluta autoridade de Deus, para formar o pensamento e a vida cristã. Isso
significa que tudo quanto a Bíblia ensina constitui tribunal de apelação
infalível. O próximo tópico de estudo diz respeito à natureza exata da
inspiração da Bíblia.
Artigo: Norman L. Geisler e William E. Nix