Ofício de Profeta, alguém que fala em lugar de Deus

Após cerca de 400 anos de silêncio profético, aparece João Batista, o último profeta do Antigo Testamento, que fecha a sucessão profética iniciada por Moisés e Arão e recebe o nobre encargo de preparar o povo para receber o Messias e, também, apresentá-lo à nação de Israel (Mc 1.2; Lc 16.16; Jo 1.31). Via-se o fim de uma era e o início de outra para Israel e para todas as nações.

VEJA TAMBÉM:

Lição 4: Paulo, a Vocação para Ser Apóstolo – Clique Aqui

Ao abordarmos o ofício do profeta, encontraremos uma relação estreita entre palavra e visão. É indivisível a função de ser vidente e portador da palavra. O profeta sempre será visionário, já que, no desempenho do seu trabalho, fará com que os receptores de sua mensagem alcancem uma compreensão divina do presente e, também, fará com que se perceba o futuro sem as incertezas que ocasionam o devir daqueles que, ignorando a profecia, vivem alheios aos desígnios de Deus e, portanto, se convertem em títeres das circunstâncias temporais ou, o que poderia ser pior, acabam sendo vítimas da manipulação dos multiformes oráculos dos falsos profetas ou iluminados de plantão.

 

Para uma maior compreensão da relação entre profeta e vidente, farei referência a três termos hebraicos que se referem, de forma especial, ao profeta do Antigo Testamento. Ainda que, com mais emprenho, eu me refira ao que talvez seja o vocábulo mais importante: nabbi. Esse termo comumente se traduz “profeta” mais de 300 vezes nas Escrituras hebraicas. A ideia básica do significado de nabbi é: “alguém que fala em lugar de Deus”; o nabbi foi necessariamente estabelecido para transmitir a mensagem de Deus.

 

1. O EXEMPLO DE MOISÉS E ARÃO

Para assegurar o sentido do termo, podemos citar algumas passagens exemplares. A primeira que mencionarei se refere ao momento em que Arão é denominado profeta de Moisés e, por sua vez, Moisés seria Deus para faraó (Êx 7.1). Esse texto se torna perfeitamente inteligível quando, após muitas objeções a Deus por parte de Moisés sobre sua capacidade de falar, Deus põe a Arão “por boca de Moisés”, dizendo: “E ele falará por ti ao povo; e acontecerá que ele te será por boca, e tu lhe serás por Deus” (Êx 4.16). Dessa forma, podemos dizer que Arão se converterá numa espécie de reprodutor ou replicador da voz que originalmente Moisés recebe diretamente de Deus, sem que ele possa nem minimamente torcer o sentido original da mensagem. A pureza da mensagem fica assegurada pela fidelidade de Arão a Moisés e deste a Deus, pelo que não há fissura possível na transmissão da mensagem.

SAIBA MAIS:

Edificados sobre o Fundamento dos Apóstolos e dos Profetas – Clique Aqui

 

Temos nesse exemplo, por conseguinte, a expressão mais simples para descrever a função do profeta: “quem fala no lugar de outro”. Implica que Arão não podia ceder a nenhuma chantagem ou pressão por parte de Faraó para ser intimidado, nem tampouco deveria mostrar presunção alguma ante o espaço de privilégio que ocupava qual porta-voz do profeta de Deus; quando se trata de ser mensageiro de Deus, a ênfase está em ser fiel ao que Deus diz e não se deixar levar pelas pressões circunstanciais, seja as exigências atuais da sociedade ou o que o cenário de incertezas futuras pressiona ao porta-voz de Deus para que diga. O compromisso do mensageiro com a palavra é proporcional à fidelidade do mensageiro a Deus.

 

Precisamente, nesta primeira acepção, já podemos fazer uma comparação do ofício do profeta em sua essência mais pura, representado por Arão e Moisés, com o que, em tantas ocasiões, vem a ser a escassa representatividade da prática do profetismo atual, por causam de quem, chamando-se profetas, convertem em anedota a prática profética que, em muitas ocasiões, vem a ser própria do jogo de cenários oportunistas diante de pessoas que buscam satisfação dos caprichos pessoais. Ou, o que é pior, quando o mensageiro acomoda a mensagem ao interesse próprio, seja qual for a razão.

 

Lamentavelmente, estamos falando de uma prática de uns tempos claramente refletidos no que disse o apóstolo Paulo, ao mencionar portadores da mensagem divina que se confabulam ou cedem ante uma sociedade cuja gente tem “comichão nos ouvidos” (2 Tm 4.3); ou seja, são dados a ouvir segundo seus próprios desejos. Tristemente, isso acaba se tornando uma tendência comum em nossos dias, onde se faz do exercício da proclamação da Palavra de Deus, sobretudo nas sociedades consumistas, uma prática populista ou agradável que procura mais agradar às massas do que fazer valer a mensagem da verdade de Deus. De fato, é lamentável que cada vez mais assistamos a um consumismo “evangélico”, no qual muitos cristãos se inclinam a buscar o que lhes faz sentir bem, e não exatamente o que agrada a Deus. O que digo é perfeitamente comprovável quando verificamos que o desejo de ser popular transformou a muitos mensageiros em profetas de comércio, que pagam para ser ouvidos e cobram para ser escutados.

 

2. NABBI, UMA VOZ QUE SUSTENTA

Uma segunda passagem exemplar para compreender o termo nabbi se acha em Deuteronômio 18.15-22. Trata-se de uma referência à promessa dada a Moisés sobre o profeta que Deus levantará no lugar dele e uma contraposição às distintas formas de adivinhação mencionadas nos versículos anteriores. Deus é contundente quando adverte ao povo a marcar uma linha de separação radical diante das nações que povoavam a Terra Prometida. A razão que justifica a contundência divina na admoestação de que não se misturem às nações pagãs se estriba na devoção delas a uma religião perversa e uma idolatria alimentada pelos demônios, expressas pelos adivinhos da terra, que traria como última consequência desviar o povo da verdadeira adoração e, logo, da obediência aos desígnios divinos (Dt 7.4).

 

Todos os deuses da Terra Prometida rendiam culto a distintas divindades relacionadas às forças da natureza, fertilidade, colheitas e prosperidade. A visão de futuro dessas nações estava condicionada pela superstição de vidências de além-túmulo, impregnada de um temor terrível dos deuses, que fazia com que as pessoas ficassem presas a pactos que incluíam sacrifícios cruéis, bestiais e promíscuos, que colocavam um alto preço à prosperidade e à suposta salvação dos seus praticantes. Frente a esse politeísmo próprio dessas nações pagãs, Deus quer que seu povo fuja dessas práticas dando culto ao Deus único e verdadeiro, que, mediante sua Palavra, marcou o destino e a visão de um povo escolhido por amor, e não por ser um povo melhor que os demais povos da terra.

 

Deus deseja que seu povo não se esqueça da relação direta existente entre a prosperidade e a fidelidade à Palavra. Justamente, Deus declara que a palavra do nabbi sustentará o povo, e não o pão da terra, o que é fruto da benção do céu. “E te humilhou, e te deixou ter fome, e te sustentou com o maná, que tu não conheceste, nem teus pais o conheceram, para te dar a entender que o homem não viverá só de pão, mas que de tudo o que sai da boca do senhor viverá o homem” (Dt 8.3; Mt 4.4). Definitivamente, a palavra que sai da boca de Deus alimentará os que nela confiam, e essa palavra se converterá em uma visão centrada nos sentidos e valores divinos expressos em seus mandamentos. O profeta, pois, tem a grandiosa tarefa de fazer com que o povo não se esqueça de quem o tem sustentado e quem será garantia de um futuro de provisão. Não resta dúvida de que essa concepção da palavra traz uma visão marcada por total dependência da provisão divina, em contraposição à superstição idolátrica em todas as suas formas e também a soberba de quem, esquecendo-se de Deus, acaba considerando que suas forças e sua sabedoria lhe deram o que tem (Dt 8.11-14).

 

Nesta mesma linha, outras passagens que claramente expõem o significado de nabbi encontramos em relação a Isaías: “Vai, e dize a este povo” (Is 6.9). O Senhor também diz a Jeremias: “Aonde quer que eu te enviar, irás; e tudo quanto te mandar dirás” (Jr 1.7). A Ezequiel Deus diz: “[...] Eu te envio aos filhos de Israel [...] e lhes dirás” (Ez 2. 3,4). Dessa forma, atendendo à sucessão profética exigida por Deus e anunciada por Moisés em Deuteronômio 18, vemos que a essência do nabbi se mantém nos profetas do Antigo Testamento.

O verdadeiro profeta deve abrir o caminho diante daqueles que vendam os olhos com vendas mágicas que provocam uma visão distorcida de Deus e fazem da provisão uma moeda de troca, ao oferecer um punhado de cevada e pedaços de pão para serem caçados em pleno voo atrás de uma visão vã (Ez 13.17-23).


Abundando neste conceito de nabbi, o vocábulo se complementa perfeitamente com a raiz nabha, que significa “borbulhar ou fluir”. Portanto, profetizar traz também o sentido de falar sob o impulso de uma fonte interior que borbulha, salta. Como disse Jesus: “Quem crê em mim [...] rios de água viva correrão do seu ventre” (Jo 7.38), referindo-se ao Espírito Santo o qual receberiam os que nEle cressem. Por isso, a ênfase da plenitude do Espírito Santo tem uma conotação profética: fazer brotar de dentro para fora a mensagem dada por Deus. As palavras de Jesus estão dirigidas aos que estão sedentos e precisam ser sustentados.

 

Mas, ao mesmo tempo, os que recebem o Espírito Santo não têm necessidade de buscar sustento fora da fonte, do manancial. Jesus disse à mulher de Samaria: “Mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água a jorrar para a vida eterna” (Jo 4.14). Se essa é uma clara referência ao derramamento do Espírito Santo, então é evidente que todo crente cheio do Espírito Santo será nabbi; sua vida será um constante borbulhar de vida, palavra e visão que fará diferença em meio à sequidão.

 

É assim que o profeta Jeremias se refere ao povo que, abandonando a fidelidade à mensagem profética, acaba se apartando da verdadeira fonte, decidindo buscar sustento para si mesmo em cisternas quebradas e impotentes para lhe garantir um futuro de provisão. No entanto, a água que querem acumular não pode ser retida (Jr 2.13), pelo que vem a seca, a pobreza e a escravidão aos poderes mesquinhos que manipulam a provisão e repartem mal a riqueza no mundo, gerando injustiça e miséria nas nações. As potências idólatras sempre manipularam as provisões injustamente; e o povo de Deus, quando se afasta da mensagem divina, também se torna vítima da usura de uma visão condicionada pela necessidade. Dessa forma, Israel faria alianças equivocadas com nações que o desviariam da verdadeira adoração e do sentido de ser povo para se tornar escravos daqueles que ofereciam comida em troca de subordinação.

 

Podemos afirmar que sempre que o povo de Deus se afasta da fidelidade à mensagem, perde a visão. E também que, sempre que o profeta é infiel à mensagem, desvia a visão e faz o povo perecer; que sempre que uma visão está condicionada pelo sustento ou a necessidade, esse tipo de visão empobrece a visão. Nunca esqueçamos que, sempre, a Palavra sustentará a visão e que a visão sustentará o mensageiro e a quem receba a palavra do mensageiro. Há galardão de profeta para quem recebe um profeta na qualidade de profeta (ver Mt 10.41).

 

3. VENDO E FAZENDO VER O QUE DEUS DIZ

Quero fazer referência a outros dois termos para profeta, traduzidos como “vidente”. Um é ro'eh, e o outro é hozeh. Ambos são usados muito menos que o termo principal nabbi. A palavra hebraica Ro'eh aparece em 12 ocasiões. Hozeh é utilizada 18 vezes; a raiz de ambas destaca o sentido de “ver”. Portanto, a ideia fundamental que quero destacar consiste na capacidade que se outorga ao profeta de poder visualizar a vontade de Deus. Isso pressupõe um enfoque revelacional na capacidade de o profeta escutar a voz de Deus. Por conseguinte, o oposto a essa capacidade de ver é a cegueira própria de quem, tendo olhos, não vê, já que se trata do âmbito do oculto aos sentidos humanos e é necessário que Deus tire o véu do mundo espiritual e se dê a conhecer.

 

Podemos observar que, em 1 Samuel 9.9, está dito expressamente: “[...] Porque ao profeta de hoje antigamente se chamava vidente”. A ideia é que quem, nos tempos de Samuel, era chamado “vidente” (ro'eh) veio a ser chamado “profeta” (nabbi) quando foi escrito o primeiro livro de Samuel. É preciso, no entanto, considerar que o uso da palavra não mudou a função do profeta. O que, sim, podemos deduzir é que, embora ro'eh-hozeh fizesse referência à recepção da mensagem, o termo nabbi se enfocaria na comunicação da mensagem.1 Portanto, trata-se da mesma função profética baseada na importância da fidelidade tanto na recepção quanto na transmissão da mensagem.

 

As duas ênfases dos termos aludidos nos convidam a refletir sobre o cuidado necessário para que o profeta seja fio condutor, sem corrupção, da voz divina. Na verdade, Deus adverte que o profeta que falar presunçosamente em seu nome prestará contas com sua vida: “E será que qualquer que não ouvir as minhas palavras, que ele falar em meu nome, eu o requererei dele. Porém o profeta que presumir soberbamente de falar alguma palavra em meu nome, que eu lhe não tenha mandado falar, ou o que falar em nome de outros deuses, o tal profeta morrerá” (Dt 18.19-20). Foram exatamente essas palavras de Deuteronômio que foram proferidas por Moisés no contexto de mostrar a Israel a necessidade do profeta, para que o povo não se desvie atrás das palavras dos encantadores, dos agoureiros, dos adivinhos e dos magos próprios das nações. Porém, o interessante dentro do que temos dito é que Moisés se mostra como profeta exemplar para garantia do verdadeiro profetismo: “O senhor, teu Deus, te despertará um profeta do meio de ti, de teus irmãos, como eu; a ele ouvireis” [...] “E nunca mais se levantou em Israel profeta algum como Moisés, a quem o senhor conhecera face a face” (Dt 18.15; 34.10). Esse nível de revelação manifesto pela expressão “face a face” indica que Moisés foi fiel a Deus em saber levar a Deus a voz do povo, esperar ouvir a resposta de Deus em sua presença e levar dita resposta como conselheiro certeiro ao povo, para que o povo vivesse seguro e prosperasse (Êx 18.19-20; 2 Cr 20.20).

Artigo: Uan C. Escobar