Os dois Livros do Profeta Samuel

I. CONTEXTO HISTÓRICO DE 1 E 2 SAMUEL

1. A Originalidade de Samuel
Para uma visão panorâmica do conteúdo de 1 e 2 Samuel, faremos um passeio em aspecto geral, no afã de situar você, leitor, no contexto, a fim de que possa assimilar bem o que nele está proposto.

Ao abrir a Bíblia Hebraica Stuttgartensi, logo você lerá Shemoel a b b (a, b) e, na Septuaginta, Basileion A. B. G. D. O Cânon Hebraico apresenta 1 e 2 Samuel como um só livro, ou seja, sem a divisão que consta em nossas Bíblias em português. Diversos nomes aparecem nas páginas desses dois livros, mas o protagonista é Samuel, ainda que a ênfase sobre ele seja mais forte nos primeiros quinze capítulos do primeiro livro. Já no segundo, seu nome não aparece, mas ele continua sendo o personagem influente.

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Particularmente, podemos asseverar que isso se deve ao fato de ele haver ungido os dois primeiros reis de Israel, Saul e Davi, o que se tornou algo indelével, mas, talvez, essa ênfase nos dois livros resulte de sua forte influência como profeta de Deus. No segundo livro que leva seu nome, Samuel não aparece mais, posto que a última referência a ele consta em 1 Samuel 28.20.
O nome de Samuel é forte nos dois livros, sendo que ele é citado 125 vezes só no primeiro livro. Em diversos outros livros das Escrituras Sagradas, seu nome também aparece, como em Crônicas, Salmos, Jeremias, Atos e Hebreus. No geral, perfaz um total de 136 vezes que seu nome é citado. Quanto a essa ênfase constante do nome de Samuel, podemos estar convictos de que não se trata de mera casualidade, mas de dois fatores preponderantes: a presença do Senhor em sua vida e a sinceridade em suas palavras.

Em sua origem, como dissemos, no hebraico, esses livros eram um só. A alteração se dá com o surgimento da Septuaginta (LXX) e daí surge a divisão em dois — 1 e 2 Samuel —, os quais eram denominados Livros dos Reinos. Nessa época, também os livros de 1 e 2 Reis, como aparecem em nossas Bíblias, eram chamados de Livros dos Reinos III e IV.
Vale ressaltar que é importante que entendamos a citação dos livros dentro do Cânon Hebraico, também feita por Jesus Cristo (Lc 24.44).
Segue então essa estrutura no hebraico:
1) Lei. Os cinco livros: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.

2) Os profetas. Estão arrolados em oito livros.
-        Os primeiros quatro livros são chamados de profetas anteriores: Josué, Juízes, Samuel, Reis.
-        Profetas posteriores, mais quatro livros, os quais envolvem os primeiros três profetas maiores: Isaías, Jeremias, Ezequiel.
-        Profetas menores, um livro, mencionando os outros doze profetas.

3) Os Kethubhim ou Escrituras. Esses são em número de onze livros, os quais podem ser classificados assim:
-        Os poéticos. São três livros: Salmos, Provérbios, Jó.
-        Os cinco rolos ou Megilloth. Cantares de Salomão, Rute, Lamentações de Jeremias, Eclesiastes, Ester.
- Os três livros históricos: Daniel, Esdras (com Neemias), Crônicas.
Esses livros fazem um total de 24 do Antigo Testamento no Cânon Hebraico, o que, nas nossas Bíblias, corresponde a um total de 39 livros. Em que se baseia a contagem diferente? Podemos responder a essa pergunta usando as palavras do Dr. Turner, em sua Introdução ao Velho Testamento:
Os livros históricos, Reis, Crônicas, e Esdras-Neemias, são por nós divididos em duas partes ou livros dos profetas menores, que os hebreus consideravam como um livro só, fazem com que 24 livros mais 11 livros sejam os mesmos 39 livros que temos em nossas Bíblias. Ocasionalmente os judeus uniam Rute com Juízes e Lamentações com Jeremias, perfazendo assim um total de somente 22 livros. (Isso correspondia às letras do alfabeto hebraico).6

É bom levar em consideração que o livro de Samuel é da categoria dos profetas anteriores, incluindo ainda os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis. Essa classificação se dá simplesmente pelo fato de relatarem a história que começa com a morte de Moisés indo até o desfecho do reino. A inclusão de Daniel como histórico, e não profético, é resultado de dois fatores: primeiramente, ele não era considerado profeta, ainda que tenha profetizado; em segundo lugar, a metade do seu livro se enquadra em um conteúdo histórico.


2. Os Personagens Principais do Livro
Diretamente citamos os seguintes nomes: Samuel, o profeta, e logo em seguida vêm os dois reis que ele ungiu — Saul e Davi. É bom lembrar que Samuel, sendo filho de Elcana, era um levita. Conforme descreve o texto, ele nasceu em Ramataim-Zofim, que pertencia ao território de Efraim.

Stanley A. Ellisen,7 falando de personagens importantes que se destacaram no Antigo Testamento, salienta três nomes: Moisés, Samuel e Esdras. Esses três homens tiveram um papel relevante na formação da Palavra do Senhor. De Moisés veio o Pentateuco, os primeiros cinco livros da Bíblia. Esdras contribuiu com quatro ou cinco livros e organizou o cânon.
Já o profeta Samuel é apontado como autor de três dos livros do meio desse período.

É notável que Samuel tem destaque não somente por ser profeta e escritor, mas, sim, porque através dele foi que se deu a ação da unção dos primeiros dois reis de Israel por ordem do Senhor, o que prosseguirá com outros profetas, culminando com o ato solene de João Batista ungir a Jesus Cristo como uma consequência profética (Mt 3.14-16).

Acreditamos também que não foi por mera casualidade que os tradutores passaram a usar como título do livro o nome Samuel. Na verdade, é claro, evidenciava sua humanidade, mas crê-se que essa reminiscência tinha como propósito egrégio falar de um humano pedido a Deus, ou ouvido por Deus.

O nome Samuel tem origem no hebraico Shemu’el, que quer dizer literalmente seu nome é Deus. O primeiro elemento tem relação com o aramaico shem, shema, shum, que significa nome, e o segundo, El, quer dizer Deus, Senhor. A Vulgata Latina de Jerônimo conferiu aos dois primeiros livros, de um total de quatro, o nome de Samuel. Na Bíblia Vulgata Latina, você encontrará a seguinte expressão: Incipit Liber Samuhelis, O livro de Samuel começa. Creio, particularmente, que o trabalho de Samuel, na transição entre teocracia e monarquia, tenha certa ligação com o seu nome, isso porque na questão teocrática era Deus agindo pelo seu povo por meio de homens, os quais eram escolhidos, como antes Ele vinha fazendo por meio de Moisés e de Josué.

O momento teocrático, que se iniciou ainda no Êxodo, quando Deus agiu selecionando homens para conduzir seu povo à Terra Prometida, perpassando por Josué, juízes e chegando até Samuel, revela que, diante da vida marcada de pecado de Israel, de Eli e seus filhos, Deus estava atento a tudo, por isso escolhe Samuel para ser o seu representante nos momentos deploráveis.

Samuel vai ser o personagem de um novo e grande momento na conquista da vida israelita, a monarquia. Aos olhos de cada judeu será algo maravilhoso, pois representará uma conquista histórica, social e política no aspecto organizacional; todavia, no quesito espiritual, nascerá uma crise grandiosa que causará grande recuo, que só será vencida com a segunda vinda de Cristo à terra.

Não se pode apenas falar de fracasso no período monárquico, posto que Deus trabalha como Ele quer. Assim, afirmamos categoricamente que esse momento da monarquia foi usado também por Deus, pois é de Davi, no sentido de descendência, que Jesus virá. Nesse particular, são cabíveis as colocações de Roy B. Zuck, que entende a monarquia como um meio usado por Deus para relacionar o seu povo entre outros povos.

O terceiro ofício usado por Deus para mediar o seu reino entre os povos foi a monarquia ou a realeza. A mudança na liderança de juízes para reis foi dramática e traumática. O governo por juízes permitia as tribos manterem maior independência. Os juízes surgiam espontaneamente e, com raras exceções, não perpetuavam o governo aos filhos que tiveram. Os reis reinavam sobre o todo o Israel continuamente e eram sucedidos por filhos quer fossem dignos ou não. Mesmo assim, o Senhor trataria com o rei no que tange ao merecimento e o mediria de acordo com o concerto davídico e o ideal davídico. Subsequentemente, o rei ideal tonar-se-ia o principal tema nos profetas, um rei que julgasse o povo de forma honesta e com justiça. Nesse grande futuro escatológico, este rei ideal será chamado de Davi, visto que Ele cumprirá mais do que o ideal davídico (Ez 34.23,24).8

Entendemos que, a partir desses personagens bíblicos — Samuel, Saul, Davi —, deve-se levar em consideração o aspecto humano, de maneira que, ainda que fossem bons ou perfeitos relativamente, não poderiam ser o modelo ideal para a nação de Israel, de maneira que ela iria sempre periclitar na sua busca constante por alguém que se tomasse de fato o rei que os israelitas desejavam, razão pela qual nasce o ideal davídico.

Precisamos entender, no entanto, que é por meio das fragilidades de cada um dos personagens elencados acima, de seus complexos psicológicos, que o Deus transcendente buscou ser imanente em cada um, tratá-los de modo que pudesse fazê-los viver segundo a sua vontade.

A humanidade de Samuel, Saul e Davi, em suas complexidades existenciais, emocionais, falhas, jamais foram obstáculo para que Deus os usasse, porém, a despeito de Saul, sua obstinação, teimosia contumaz, o levou a ser desprezado por Deus, não por causa de sua humanidade, mas, sim, por sua vontade deliberada de não se submeter a Deus. Nesses três personagens, podemos enxergar cada um de nós, com nossas individualidades, nossos complexos, nossos desejos, aspirações, falhas, pecados, ambições e, por vezes, as posições que ocupamos nos fazem esquecer de Deus, porém, essa humanidade frágil, suscetível constantemente de queda, pode ser amalgamada pela presença do Eterno, o que resultará nas palavras de Paulo: “E disse-me: A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas fraquezas, para que em mim habite o poder de Cristo” (2 Co 12.9).

Nossa ínfima humanidade não é razão para Deus deixar de nos usar. Prova disso é que Ele usou homens normais, com falhas, mas que se dispuseram a viver segundo a sua Palavra. O senhor quer usar qualquer pessoa, desde que seja humilde e que renuncie seu egocentrismo, prepotência humana, diante do poder divino.

3. Propósito de 1 e 2 Samuel
Transição deve ser a palavra certa para tratar do propósito dos livros de 1 e 2 Samuel, isso porque eles visam, de modo conexo, narrar a história pormenorizada dos eventos que se sucederam dos antigos juízes ao período da monarquia. Não se pode fazer qualquer desconexão do livro de Samuel com os outros presentes no Antigo Testamento, pois se harmonizam na contextura histórica de modo geral.

Moisés foi o primeiro juiz de Israel, uma grande figura para o povo de Deus. O último deles será Samuel, que também será apresentado como um grande profeta, que ungirá os dois primeiros reis de Israel. O propósito maior desses dois livros é descrever o papel desse homem como agindo na difícil transição da teocracia para a monarquia, como também de seu grande ofício profético nas páginas veterotestamentárias, indo até João Batista, como é citado: “A lei e os profetas vigoraram até João; desde esse tempo, vem sendo anunciado o evangelho do reino de Deus, e todo homem se esforça por entrar nele” (Lc 16.16, ARA).

O doutor Stanley A. Ellisen nos agracia com uma maravilhosa e propícia colocação ao tratar sobre o objetivo dos dois livros de Samuel:

O objetivo dos livros de Samuel é apresentar a história do desenvolvimento de Israel desde um estado de anarquia até um estado de monarquia teocrática. Dá uma descrição religiosa do crescimento da nação, mostrando a futilidade da tentativa de unificação e crescimento nacional por esforço e liderança humanos, bem como o grande poder e prestígio de uma nação fundada em princípios teocráticos sob um rei indicado por Deus. Motivo dominante é a glória e o poder de uma nação que corresponde ao Senhor Soberano.9

Nessa colocação, percebemos que qualquer busca por crescimento, unificação por forças humanas, sem a presença de Deus é inútil. Isso fala fortemente para nós, Igreja do Senhor, que devemos priorizar o crescimento, o sucesso, pautado nos princípios espirituais, jamais nos esquecendo de que sem Jesus nada podemos fazer (Jo 15.5).

Há, claro, uma variedade de assuntos presentes em 1 e 2 Samuel, porém asseguramos que, no tocante aos propósitos, destaca-se o que foi supracitado. Além disso, há aqueles que podem ser listados como exemplo para nós no que tange à questão espiritual e moral, os quais são resultado das experiências vividas pelos três personagens principais dos livros.

Com Samuel, aprendemos que o crescimento e a estabilidade do nosso ministério dependem de nosso servir com obediência e sinceridade, ser verdadeiro no falar (1 Sm 3. 19-21). Com o rei Saul, aprendemos que podemos estar vulneráveis a forças demoníacas, entre outros transtornos, quando não confiamos em Deus, quando nos deixamos levar pela sede de poder. Seu insucesso resultou da não obediência à voz divina (1 Sm 14.26). Já com Davi, aprendemos que podemos perder grandes privilégios ao nos envolvermos com o pecado. Esse procedimento quase lhe custou a vida e o trono.

II.    AUTORIA E DATA

1. Autor e Título
Trataremos primeiramente do autor do livro. É variável e questionável essa questão por diversos estudiosos, todavia, no seu elemento interno, atribui-se a Samuel parte do escrito do livro, dentre outros nomes que vêm depois dele, como Natã e Gade (1 Sm 10.25; 1 Cr 29.29). Além desses, não há qualquer menção a outros autores que pudessem ter escrito 1 e 2 Samuel.

Entendemos claramente que no seu todo Samuel não escreveu os dois livros, pois sua morte se deu quando o rei Saul ainda vivia. Ademais, o glorioso reinado de Davi não foi presenciado por ele, mas é forte o argumento do Talmude ao afirmar que boa parte dessa obra tenha sido escrita por esse profeta.

Podemos dizer que as críticas volumosas sobre o autor de Samuel se devem a essas duas interfaces — que Samuel morreu antes de Saul e que o segundo livro reserva seu conteúdo para tratar especificamente sobre o reinado de Davi. Nesse cenário é que a alta crítica irá atuar, assegurando que esses livros tiveram diversas origens, daí o motivo de se falar em múltipla autoria.

A alta crítica, obviamente, fala das contradições, relatos que são duplicados, presentes nos dois livros. Sendo assim, através da múltipla autoria, poderia se resolver certas dificuldades que foram surgindo no decorrer do tempo, pois os autores se apropriaram de algumas informações históricas dignas de confiança, como também de informações orais, tradicionais. A alta crítica argumenta ainda que, de Deuteronômio a Reis, aconteceu uma reescrita de tudo, o que se deu em 621 e 550 a.C., e que esses mesmos compiladores foram os responsáveis por escrever os dois livros de 1 e 2 Samuel.

Existe também a teoria das fontes informativas. Por meio delas se assevera que 1 e 2 Samuel nascem de um misto de fontes diversas. Fala-se em dois ou três tipos delas. Para Eissfeldt, 1 e 2 Samuel procedem das fontes informativas J, E e L, sendo que as duas primeiras são oriundas das teorias J. E. D. P. S. Muitos estudiosos apelam para essas fontes, afirmando que os livros bíblicos de Gênesis a Reis advieram delas. No tocante à letra L, ela pode expressar ou tratar de informantes leigos; também evidencia opiniões vulgares, sem qualquer pretensão teológica, firmadas na Arca da Aliança. São muitos os que creem nesses tipos de teoria ou fontes, razão pela qual ratificam que os livros de Gênesis a Reis foram escritos fundamentados nelas.

Nesse parâmetro, existem aqueles que questionam se algumas fontes alcançaram o conteúdo de 1 e 2 Samuel.12 Bentzen crê que as fontes J e E não fizeram parte do conteúdo de Samuel. Albright descarta essas duas fontes como sendo recorridas para o conteúdo ora apresentado. Para Segai, que também dispensa as fontes informativas para Samuel, houve outras narrativas que se ajustaram, como sendo independentes, no tocante a Samuel, Davi e Saul: a Arca.

Entra em cena também sobre a questão de 1 e 2 Samuel a denominada Escola Tradicional Histórica. Seus idealizadores propõem que as sagas no tocante à Arca da Aliança, dentre outros assuntos, foram criadas. Daí se tem diversas crônicas sem uma harmonização plena, mas desconexas, por isso remetem os escritos de 1 e 2 Samuel a tempos posteriores, ou seja, o período pós-exílio.

Muitos dos que não creem na inspiração bíblica, como deveriam, procuram desfazer dos escritos canônicos e, para isso, apresentam suas evasivas. No tocante a Samuel, afirmam que são meros conteúdos de tradições orais, ou simples fragmentos de novelas históricas buscando exaltar certas personagens bíblicas, como, por exemplo, Davi, mas que, na verdade, ainda que exista algum elemento histórico nesse particular, seria mutável, variável, flutuante.

Podemos considerar o esforço de muitos em compreender a autoria real dos livros de 1 e 2 Samuel, todavia, entendemos que o melhor de tudo é ficar com o que realmente crônicas relata (1 Cr 29.29) e que um compilador organizou — o que os três autores fizeram, inclusive o ato de recorrer ao Livro dos Justos (2 Sm 1.18), que se tratava de uma fonte histórica.

Há grande perigo em seguir as teorias das fontes. Nesse sentido, Joyce está correto ao encetar em seu livro três colocações sobre a questão das fontes. Ele é partidário do ponto de vista de que perguntas quanto à composição dos livros poderiam ser feitas, porém as fontes apresentadas por esses pesquisadores não se firmaram em dados sólidos.

Podemos dizer que o trabalho de Wellhausen e demais pesquisadores, pelos métodos de estudos adotados, contribuíram grandemente na pesquisa envolvendo conhecimento linguístico, literário e histórico, o que levou muitos a terem interesse por um conhecimento mais profundo do texto das Escrituras Sagradas. O grande problema nessa questão toda, porém, é que antes os estudiosos eruditos se rendiam perante o texto, mas, doravante, o texto ficava sob seu controle, de maneira que faziam o que pretendiam com ele. Assim, a rigor, a autoridade sobrenatural foi descartada e valorizou-se mais o método científico, buscando sistematização e crença por meio unicamente da razão.

A essência do que consta nas Escrituras é que sua mensagem, por si mesma, é vivificante, conforme escreveu o escritor aos Hebreus, ao afirmar que a Palavra de Deus é viva e eficaz (Hb 4.12), Desse modo, o texto bíblico não pode se restringir ou ser delimitado pelo seu leitor, antes, deve se render com temor a ele para poder desfrutar das maravilhas ali presentes, clamando como o salmista: “Desvenda os meus olhos, para que veja as maravilhas da tua lei” (SI 119.18).

2. Uma Descrição das Fontes Diversas
Sabe-se que comumente os judeus viam o Pentateuco como sendo de autoria de Moisés, pensamento que também irá permear o ambiente cristão. Foi, porém, em 1670, quando um judeu de nome Baruch Spinoza passou a dizer que na verdade o Pentateuco poderia ter outro autor, no caso Esdras. Passou a surgir nessa particular teoria diversa sobre esse assunto.

No comentário bíblico editado por F. Davidson (O Novo Comentário da Bíblia), falando dessas críticas das fontes e documentos, o autor descreve com precisão os males que tais fontes causam. Por isso é que precisamos rejeitá-las.

Não vem a propósito encetar uma discussão acerca dos princípios sobre os quais os críticos liberais construíram uma teoria que lhes permite dividir o Velho Testamento por escritores desconhecidos como J, E, P, D, bem assim como por muitos outros com estes intimamente relacionados. Pensamos que esses críticos e suas escolas construíram as suas teorias sobre alicerces errados. Muitas das suas suposições basearam-se em ideias erradas e rejeitou-se sempre o elemento sobrenatural da revelação. Procurou-se, sobretudo, fixar as fontes de origem numa data recente, a fim de atribuir as elevadas concepções morais e espirituais do Velho Testamento a naturais princípios de evolução, eliminado assim o elemento sobrenatural ou, pelo menos, reduzindo-o ao mínimo. Para os críticos liberais, os livros de Samuel comprovam, ainda mais que os do Pentateuco, a existência sobre autores diversos.

Abaixo apresentaremos alguns representantes das teorias documentárias, mas atentando para o que foi dito acima: elas se fundamentam em ideias erradas, não consideram o aspecto sobrenatural, espiritual, pontuando que as elevações morais e espirituais são evolutivas.

Essas teorias se originaram devido aos diversos nomes de Deus, os recursos literários. As fases diversas dos cultos fizeram com que os críticos passassem a pensar que para tudo isso existiam inúmeros documentos originais; dentre eles iremos apresentar alguns.

O primeiro a se mencionar é Jean Astruc (1753), que afirmou que era possível haver autoria dupla para o Pentateuco, posto que ali estivessem presentes dois nomes de Deus: o primeiro, Elohim, que passa a ter a fonte E.; o segundo, Yahweh, que tem a fonte J., do nome Javé. Quem anda nessa mesma linha de pensamento é Johann Eichorn (1780); para ele havia dois escritores para o Pentateuco, posto que os estilos literários eram diferentes.

Diferentemente dos dois nomes citados acima, aparece Alexander Geddes, também conhecido como W. M. Wett (1792). Ele acreditava que no caso do livro de Gênesis não havia apenas um autor, Moisés, mas que eram diversos, ao passo que alguém reuniu todos esses documentos partindo dos mais primitivos.

Mais três nomes merecem ser destacados aqui: Karl Graf, Hermann Hupfeld, Abraham Kuenen (1853-69), os quais trabalharam na divisão de um documento E., buscando separar um código denominado Sacerdotal P. Eles entenderam que Deuteronômio era o último documento denominado D.

Por fim, vamos citar o nome de Julius Wellhausen (1876). Por meio dele se deu a clássica organização da teoria documentária em ordem JEDP. Esse homem apresentou datas tardias para o Pentateuco, afirmando que fora escrito durante o exílio ou posterior a ele.
Para a compreensão dessas letras, vamos especificar o sentido de cada uma delas:

Letra J. Trata de Javé. Nesse caso, os escritos se deram no Reino do Sul (950 a.C.).
Letra E. Corresponde ao nome de Deus — Elohim. Fazia parte do Reino do Norte (850 a.C.).
Letra D. Deuteronômio. Sua época é antes de Josias (650 a.C.).
Letra P. Código Sacerdotal. Nele constavam as tradições mosaicas, as genealogias sacerdotais. É pós-exílio, tendo sua data em 525 a.C.

Com a apresentação dessas fontes, destacamos que duas coisas aconteciam: primeiramente, a inspiração divina é posta em questionamento, pois cada livro é produto das invenções religiosas, e não palavras diretas do Senhor. A segunda é que os acontecimentos presentes nos livros, ou seja, suas narrativas, não são confiáveis, pois alguns acontecimentos não passam simplesmente de alguma coisa criada por seguidores de suas próprias crendices ou religiosidade.

Agora trataremos da data do livro, que é muito discutida, todavia, se levarmos em consideração que quem os escreveu foi Samuel, Natã e Gade, tais escritos foram feitos no período do reinado de Davi, ou tempos próximos. Na questão dessas datas, os pesquisadores patinam grandemente. Eles apontam os capítulos 9-20 de 2 Samuel como tendo sido escritos no século X a.C.; as demais porções foram escritas em tempos posteriores, chegando até o período pós-cativeiro babilônico.

Apresentam-se dois fortes argumentos para se confirmar que esse livro foi escrito em datas anteriores: primeiro, a questão da promessa davídica, que, nesse caso, Davi a teria imposto para preservar sua dinastia, o que também preservaria o reinado de Salomão, seu filho, e que isso teria que ser no limiar do seu reinado, ainda que da parte de Judá aceitasse Davi como rei, as demais não. O outro argumento está no texto de 1 Samuel 27.6, afirmando que Ziclague pertence ao rei de Judá; assim ficava provado que o livro de Samuel fora escrito no período da monarquia dividida, depois do reinado de Salomão. Para outros, porém, essas palavras foram colocadas tempos depois. Diante de todos esses pontos discursivos, a datação apresentada para os livros é a seguinte: 970 a 722 a.C.

3. A Situação Espiritual e Política de Israel

O panorama que é descrito logo no preâmbulo do capítulo 1 de Samuel é um quadro de letargia espiritual grandiosa, mas não para por aí. Lendo o capítulo 7 de 1 Samuel, a idolatria, que era proibida terminantemente por Deus, estava sendo praticada pelo povo de Deus de forma descabida. Outra coisa forte no meio israelita era a imoralidade, a qual tinha atingido os dois sacerdotes filhos de Eli, que serviam no sacerdócio em Siló. O coração deles era dominado pela luxúria, cobiça, dentre outros pecados. No tocante a Eli, Deus não o repreendeu por qualquer falha no seu sacerdócio; antes seu pecado era devido à falta de disciplina para com os seus filhos, razão pela qual sofreria as consequências divinas, inclusive a perda do sacerdócio (1 Sm 2.29,33).

É preciso entender que não somente Eli e seus filhos estavam vivendo essa lassidão espiritual e moral, mas também o povo de Deus estava atolado no lamaçal do pecado e da imoralidade. Muitos estavam vivendo dissimuladamente uma religião de aparência, pois praticavam os mais absurdos atos imorais e idolátricos. Por tudo isso, era inevitável o julgamento da parte divina, que viria através dos filisteus. Por causa desses pecados, eles perderam a Arca. Eli e seus filhos faleceram de maneira dramática.

Podemos dizer que o fracasso político de Israel derivava também de sua situação espiritual, no século 11 a.C.; percebem-se lideranças fracas, divisões presentes, uma anarquia total, tudo por causa da falta de um grande líder. Juízes confirma isso quando começa falando da morte de Josué, que, depois dele, a nação se fragmentou, ficou sem liderança forte (Jz 1.1), razão pela qual surgiram os líderes emergentes, ou seja, os juízes, por vezes indicados por Deus, mas, em alguns casos, pelos próprios sacerdotes.

Vale dizer que, fora esses problemas, Israel enfrentava as ferrenhas perseguições dos seus opositores, com destaque, claro, para os filisteus da região sudoeste. Havia também os vizinhos consanguíneos. Foram os filisteus que os derrotaram e tomaram a Arca da Aliança, mas eles também dominaram e se apossaram de boa parte da Jordânia Ocidental.

No tempo do reinado de Davi, a questão do estado político, especialmente da união, é bem problemática, primeiramente porque ele terá que enfrentar oposição do lado de dentro e, mais adiante, também do lado de fora, mas, sendo ele o líder escolhido por Deus, grande guerreiro, sempre dependendo do auxílio divino, paulatinamente foi lutando e colocando as coisas no devido lugar. Não demorou para que a nação começasse a ter grande respeito e crescimento político.

Como um líder nato e selecionado por Deus, Davi, com sua liderança forte, conseguirá derrotar e expulsar os filisteus; não somente eles, mas a força de Edom, Moabe, Síria, Amom, dentre esses muitos se tomaram subservientes a Davi; outros ainda irão fazer com ele pacto de paz. Mais uma vez destacamos que tudo isso aconteceu porque Davi sempre buscou o socorro em Deus, pois é Ele quem estabelece reis (Dn 2.21).

III.  A TEOLOGIA NO LIVRO DE SAMUEL

1. O Historicismo Profético
Na questão do historicismo profético, não se atrelando ao lado histórico profético como fonte, o que se pretende enunciar é que os acontecimentos envolvendo os três capítulos mais destacados dos livros de Samuel, os quais assinalam a grande mudança na sua estrutura espiritual e social, não transcorreram por mera casualidade do destino, mas se desenrolaram sob a égide divina, por meio do peso das palavras proféticas, as quais são definidas como pressuposições teológicas.

Em cada momento vivido pelo povo de Deus, Israel, o Senhor estava no controle de tudo — é isso o que se pode ver na análise dos três capítulos que revelam esse lado teológico. O conteúdo dos livros de Samuel é histórico, mas sabe-se que ambos têm um peso teológico muito forte, que diversos autores salientam como três pontos principais: 
(1) a soberania divina; 
(2) o pecado; e 
(3) o pacto davídico.

Joyce G. Baldwin, falando do ponto de vista teológico do livro, assegura:

Nos livros de Samuel, há três capítulos que se destacam como marcas, caracterizados por sua interpretação das mudanças históricas que estavam ocorrendo na estrutura de liderança de Israel. São eles: 1 Samuel 7, 1 Samuel 12 e 2 Samuel 7. Isso não quer dizer que o restante dos livros não seja teológico, pois pressuposições teológicas permeiam o todo; contudo, nesses capítulos um profeta expõe a palavra divina para cada etapa da crise que o povo de Deus estava atravessando.14

No que tange à questão do aspecto teológico presente nos livros de 1 e 2 Samuel, é preciso entender que existem elementos nas Escrituras que não podem ser apresentados ou entendidos somente em um contexto histórico, físico, mas somente em Deus, o autor da Bíblia.

A teologia desses dois livros, segundo Roy B. Zuck,16 está em dois níveis: no dos acontecimentos envolvendo a vida de Samuel, que é um jovem que aprende na casa do Senhor, torna-se um juiz de fé, e também no de Davi e Saul, revelando o lado humano e o tratamento divino com cada um, pois ainda que apresentassem pecados, erros, falhas, Deus estava controlando cada acontecimento para concretizar os seus propósitos.

Primeiramente temos que entender no texto que é descrito tanto a vontade soberana como a vontade permissiva da parte do Senhor. É claro que em momento algum Deus ficou feliz com a atitude do seu povo em querer um rei como as demais nações, inclusive de ele lutar suas batalhas, posto que desse modo estavam desprezando a vontade soberana do Senhor (1 Sm 8.7). Deus permitiu que Israel tivesse um rei, inclusive posteriormente afirma que o abençoaria, mesmo tendo o povo feito a escolha, no caso Saul (1 Sm 9.16).

Uma leitura precisa do texto mostra que Deus deu oportunidade a Saul para que tivesse condições de fortalecer o seu reino, inclusive a ênfase é bem clara: “para sempre” (1 Sm 13.13). O que leva Saul a ser rejeitado é o seu próprio pecado. Não há qualquer apontamento de Samuel em afirmar que a perda da dinastia de Saul era porque ele fora predestinado, mas, sim, porque não procedera como deveria. Desse modo ele é punido por seus pecados.
Podemos entender que de antemão Deus sabia e previu tudo o que aconteceria com Saul, mas, como disse, Ele deixou acontecer para evidenciar ao povo que um rei escolhido apenas pela vontade humana é muito prejudicial. O que deve se levar em consideração na questão de Saul é que envolvia também o lado da responsabilidade humana.

Creio que você tenha percebido que o primeiro aspecto teológico dos livros de 1 e 2 Samuel é em relação à soberania de Deus. O segundo é quanto ao pecado cometido pelos personagens mais influentes do livro — Eli, Samuel, Davi, Saul. A princípio são evidenciados os pecados mais dissolutos e abusivos cometidos pelos filhos de Eli na condição de sacerdotes (1 Sm 2.13-17; 3.13), os quais não são, em momento algum, penalizados pelo pai. Em se tratando de Samuel, a causa que levará o povo a pedir um novo rei deriva de pecados cometidos por seus filhos, o que acontecerá de fato (1 Sm 8.5).

Observe que a ênfase envolvendo cada um desses personagens destaca o lado humano, como a vulnerabilidade para o pecado, fosse quem fosse. Saul, por exemplo, sendo escolhido, separado para ser rei, não demorará para mostrar seu lado pecaminoso. Ele será um rebelde contumaz, não obedecendo à voz de Deus, indo às mais baixas e miseráveis condições, pois espíritos malignos o dominam. Ele manifestará uma inveja doentia, que, para alguns, é evidência de algum tipo de demência precoce, mas que, na verdade, era pecado mesmo, pois quem peca vive em situações as mais deploráveis.

A condição degradante de Saul é vista no caso de ele buscar orientação com a feiticeira de En-Dor (1 Sm 28.6). Por não ter mais resposta de Deus por causa de sua rebeldia, ele apela para esse vergonhoso recurso. A condição espiritual e moral do rei Saul era a mais triste. Esse rei teve um fim triste, tudo porque não procurou andar nos caminhos verdadeiros do Senhor.

É severa a maneira como as Escrituras Sagradas abordam os degradantes atos pecaminosos cometidos por Davi, um homem que fora escolhido e que era do coração de Deus, que tinha uma grande paixão pela presença de Deus, que realmente expressa grande fé nEle. Não se pode apagar os momentos cintilantes da vida desse grande rei de Israel, mas não se pode ocultar o seu duplo pecado, os quais aconteceram de modo covarde: adultério e homicídio — resultado da não vigilância, do descuido.

Deus usou de misericórdia e graça para com Davi, perdoando seus pecados quando foram confessados (2 Sm 12.13), porém as consequências foram sérias e inevitáveis: ele teve que arcar com todas e de maneira caríssima.

O que aprendemos com os relatos bíblicos envolvendo esses personagens que foram escolhidos por Deus é que cada um deles era humano, cometia pecados, falhas, errava, e, como líderes, não eram perfeitos. Quando, entretanto, procuravam se voltar para Deus com sincero coração, prontamente eram abençoados. Assim, ainda que venhamos a falhar, podemos nos voltar para Deus com um coração sincero e quebrantado — Ele não nos abandonará.

Frente a todos os pecados e erros de Davi, Deus o perdoou, e não somente isso, fez com ele um pacto. Segundo alguns biblistas, esse pacto implementou algo a mais àquilo que havia sido dito no pacto abraâmico. Podemos considerar três pontos fortes nesse pacto davídico: 
(1) linhagem eterna; 
(2) firmeza no trono; e 
(3) um reino eterno.

É bom levar em consideração que, no tocante ao governo eterno, mais uma vez dizemos que se tratava de Jesus Cristo, o qual descenderia da casa de Davi. Por isso, nesse sentido, Champlin escreve:

A Davi foi prometida uma linhagem permanente, um trono firme e um reino perpétuo. O direito de governar Israel para sempre caberia a um de seus descendentes, promessa que antecipa e garante o reinado eterno do Senhor Jesus Cristo, o Filho maior de Davi. A fidelidade e o amor constante de Deus por Seu servo Davi podem ser vistos no fato de que Ele o perdoou graciosamente de seu grave pecado duplo: adultério e homicídio.17

O rei Davi em tudo reconheceu a bondade divina direcionada à sua pessoa, por isso agradece com louvor ao Deus bendito, entendendo que tudo o que tinha alcançado vinha dEle. Ademais, ele se sente ainda mais feliz por causa da promessa que Deus fez para com a sua casa, ou seja, o pacto davídico (2 Sm 23.1).

Autor: Pr. Osiel Gomes