I. CONTEXTO HISTÓRICO DE 1 E 2 SAMUEL
1. A Originalidade de
Samuel
Para uma visão
panorâmica do conteúdo de 1 e 2 Samuel, faremos um passeio em aspecto geral, no
afã de situar você, leitor, no contexto, a fim de que possa assimilar bem o que
nele está proposto.
Ao abrir a Bíblia
Hebraica Stuttgartensi, logo você lerá Shemoel a b b (a, b) e, na
Septuaginta, Basileion A. B. G. D. O Cânon Hebraico apresenta 1 e 2 Samuel como
um só livro, ou seja, sem a divisão que consta em nossas Bíblias em português.
Diversos nomes aparecem nas páginas desses dois livros, mas o protagonista é
Samuel, ainda que a ênfase sobre ele seja mais forte nos primeiros quinze
capítulos do primeiro livro. Já no segundo, seu nome não aparece, mas ele
continua sendo o personagem influente.
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Particularmente,
podemos asseverar que isso se deve ao fato de ele haver ungido os dois
primeiros reis de Israel, Saul e Davi, o que se tornou algo indelével, mas,
talvez, essa ênfase nos dois livros resulte de sua forte influência como
profeta de Deus. No segundo livro que leva seu nome, Samuel não aparece mais,
posto que a última referência a ele consta em 1 Samuel 28.20.
O nome de Samuel é forte nos dois
livros, sendo que ele é citado 125 vezes só no primeiro livro. Em diversos
outros livros das Escrituras Sagradas, seu nome também aparece, como em
Crônicas, Salmos, Jeremias, Atos e Hebreus. No geral, perfaz um total de 136
vezes que seu nome é citado. Quanto a essa ênfase constante do nome de Samuel,
podemos estar convictos de que não se trata de mera casualidade, mas de dois
fatores preponderantes: a presença do Senhor em sua vida e a sinceridade em
suas palavras.
Em sua origem, como
dissemos, no hebraico, esses livros eram um só. A alteração se dá com o
surgimento da Septuaginta (LXX) e daí surge a divisão em dois — 1 e 2 Samuel —,
os quais eram denominados Livros dos Reinos. Nessa época, também os livros de 1
e 2 Reis, como aparecem em nossas Bíblias, eram chamados de Livros dos Reinos
III e IV.
Vale ressaltar que é
importante que entendamos a citação dos livros dentro do Cânon Hebraico, também
feita por Jesus Cristo (Lc 24.44).
Segue então essa estrutura no hebraico:
1) Lei. Os cinco livros:
Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.
2) Os profetas. Estão arrolados em
oito livros.
- Os primeiros quatro livros são chamados
de profetas anteriores: Josué, Juízes, Samuel, Reis.
- Profetas posteriores, mais quatro
livros, os quais envolvem os primeiros três profetas maiores: Isaías, Jeremias,
Ezequiel.
- Profetas menores, um livro, mencionando
os outros doze profetas.
3) Os Kethubhim ou
Escrituras.
Esses são
em número de onze livros, os quais podem ser classificados assim:
- Os poéticos. São três livros: Salmos,
Provérbios, Jó.
- Os cinco rolos ou Megilloth. Cantares de
Salomão, Rute, Lamentações de Jeremias, Eclesiastes, Ester.
- Os três livros
históricos: Daniel, Esdras (com Neemias), Crônicas.
Esses livros fazem um
total de 24 do Antigo Testamento no Cânon Hebraico, o que, nas nossas Bíblias,
corresponde a um total de 39 livros. Em que se baseia a contagem diferente?
Podemos responder a essa pergunta usando as palavras do Dr. Turner, em sua Introdução
ao Velho Testamento:
Os livros históricos,
Reis, Crônicas, e Esdras-Neemias, são por nós divididos em duas partes ou
livros dos profetas menores, que os hebreus consideravam como um livro só,
fazem com que 24 livros mais 11 livros sejam os mesmos 39 livros que temos em
nossas Bíblias. Ocasionalmente os judeus uniam Rute com Juízes e Lamentações
com Jeremias, perfazendo assim um total de somente 22 livros. (Isso
correspondia às letras do alfabeto hebraico).6
É bom levar em
consideração que o livro de Samuel é da categoria dos profetas anteriores,
incluindo ainda os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis. Essa classificação
se dá simplesmente pelo fato de relatarem a história que começa com a morte de
Moisés indo até o desfecho do reino. A inclusão de Daniel como histórico, e não
profético, é resultado de dois fatores: primeiramente, ele não era considerado
profeta, ainda que tenha profetizado; em segundo lugar, a metade do seu livro
se enquadra em um conteúdo histórico.
2. Os Personagens
Principais do Livro
Diretamente citamos os
seguintes nomes: Samuel, o profeta, e logo em seguida vêm os dois reis que ele
ungiu — Saul e Davi. É bom lembrar que Samuel, sendo filho de Elcana, era um
levita. Conforme descreve o texto, ele nasceu em Ramataim-Zofim, que pertencia
ao território de Efraim.
Stanley A. Ellisen,7
falando de personagens importantes que se destacaram no Antigo Testamento,
salienta três nomes: Moisés, Samuel e Esdras. Esses três homens tiveram um
papel relevante na formação da Palavra do Senhor. De Moisés veio o Pentateuco,
os primeiros cinco livros da Bíblia. Esdras contribuiu com quatro ou cinco
livros e organizou o cânon.
Já o profeta Samuel é
apontado como autor de três dos livros do meio desse período.
É notável que Samuel
tem destaque não somente por ser profeta e escritor, mas, sim, porque através
dele foi que se deu a ação da unção dos primeiros dois reis de Israel por ordem
do Senhor, o que prosseguirá com outros profetas, culminando com o ato solene
de João Batista ungir a Jesus Cristo como uma consequência profética (Mt 3.14-16).
Acreditamos também que
não foi por mera casualidade que os tradutores passaram a usar como título do
livro o nome Samuel. Na verdade, é claro, evidenciava sua humanidade, mas
crê-se que essa reminiscência tinha como propósito egrégio falar de um humano
pedido a Deus, ou ouvido por Deus.
O nome Samuel tem
origem no hebraico Shemu’el, que quer dizer literalmente seu nome é Deus. O
primeiro elemento tem relação com o aramaico shem, shema, shum, que significa
nome, e o segundo, El, quer dizer Deus, Senhor. A Vulgata Latina de Jerônimo
conferiu aos dois primeiros livros, de um total de quatro, o nome de Samuel. Na
Bíblia Vulgata Latina, você encontrará a seguinte expressão: Incipit Liber
Samuhelis, O livro de Samuel começa. Creio, particularmente, que o trabalho de
Samuel, na transição entre teocracia e monarquia, tenha certa ligação com o seu
nome, isso porque na questão teocrática era Deus agindo pelo seu povo por meio
de homens, os quais eram escolhidos, como antes Ele vinha fazendo por meio de
Moisés e de Josué.
O momento teocrático,
que se iniciou ainda no Êxodo, quando Deus agiu selecionando homens para
conduzir seu povo à Terra Prometida, perpassando por Josué, juízes e chegando
até Samuel, revela que, diante da vida marcada de pecado de Israel, de Eli e
seus filhos, Deus estava atento a tudo, por isso escolhe Samuel para ser o seu
representante nos momentos deploráveis.
Samuel vai ser o
personagem de um novo e grande momento na conquista da vida israelita, a
monarquia. Aos olhos de cada judeu será algo maravilhoso, pois representará uma
conquista histórica, social e política no aspecto organizacional; todavia, no
quesito espiritual, nascerá uma crise grandiosa que causará grande recuo, que
só será vencida com a segunda vinda de Cristo à terra.
Não se pode apenas
falar de fracasso no período monárquico, posto que Deus trabalha como Ele quer.
Assim, afirmamos categoricamente que esse momento da monarquia foi usado também
por Deus, pois é de Davi, no sentido de descendência, que Jesus virá. Nesse particular,
são cabíveis as colocações de Roy B. Zuck, que entende a monarquia como um meio
usado por Deus para relacionar o seu povo entre outros povos.
O terceiro ofício
usado por Deus para mediar o seu reino entre os povos foi a monarquia ou a
realeza. A mudança na liderança de juízes para reis foi dramática e traumática.
O governo por juízes permitia as tribos manterem maior independência. Os juízes
surgiam espontaneamente e, com raras exceções, não perpetuavam o governo aos
filhos que tiveram. Os reis reinavam sobre o todo o Israel continuamente e eram
sucedidos por filhos quer fossem dignos ou não. Mesmo assim, o Senhor trataria
com o rei no que tange ao merecimento e o mediria de acordo com o concerto
davídico e o ideal davídico. Subsequentemente, o rei ideal tonar-se-ia o
principal tema nos profetas, um rei que julgasse o povo de forma honesta e com
justiça. Nesse grande futuro escatológico, este rei ideal será chamado de Davi,
visto que Ele cumprirá mais do que o ideal davídico (Ez 34.23,24).8
Entendemos que, a
partir desses personagens bíblicos — Samuel, Saul, Davi —, deve-se levar em
consideração o aspecto humano, de maneira que, ainda que fossem bons ou
perfeitos relativamente, não poderiam ser o modelo ideal para a nação de
Israel, de maneira que ela iria sempre periclitar na sua busca constante por
alguém que se tomasse de fato o rei que os israelitas desejavam, razão pela
qual nasce o ideal davídico.
Precisamos entender,
no entanto, que é por meio das fragilidades de cada um dos personagens elencados
acima, de seus complexos psicológicos, que o Deus transcendente buscou ser
imanente em cada um, tratá-los de modo que pudesse fazê-los viver segundo a sua
vontade.
A humanidade de
Samuel, Saul e Davi, em suas complexidades existenciais, emocionais, falhas,
jamais foram obstáculo para que Deus os usasse, porém, a despeito de Saul, sua
obstinação, teimosia contumaz, o levou a ser desprezado por Deus, não por causa
de sua humanidade, mas, sim, por sua vontade deliberada de não se submeter a
Deus. Nesses três personagens, podemos enxergar cada um de nós, com nossas
individualidades, nossos complexos, nossos desejos, aspirações, falhas,
pecados, ambições e, por vezes, as posições que ocupamos nos fazem esquecer de
Deus, porém, essa humanidade frágil, suscetível constantemente de queda, pode
ser amalgamada pela presença do Eterno, o que resultará nas palavras de Paulo:
“E disse-me: A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na
fraqueza. De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas fraquezas, para que em
mim habite o poder de Cristo” (2 Co 12.9).
Nossa ínfima
humanidade não é razão para Deus deixar de nos usar. Prova disso é que Ele usou
homens normais, com falhas, mas que se dispuseram a viver segundo a sua
Palavra. O senhor quer usar qualquer pessoa, desde que seja humilde e que
renuncie seu egocentrismo, prepotência humana, diante do poder divino.
3. Propósito de 1 e 2 Samuel
Transição deve ser a
palavra certa para tratar do propósito dos livros de 1 e 2 Samuel, isso porque
eles visam, de modo conexo, narrar a história pormenorizada dos eventos que se
sucederam dos antigos juízes ao período da monarquia. Não se pode fazer
qualquer desconexão do livro de Samuel com os outros presentes no Antigo
Testamento, pois se harmonizam na contextura histórica de modo geral.
Moisés foi o primeiro
juiz de Israel, uma grande figura para o povo de Deus. O último deles será
Samuel, que também será apresentado como um grande profeta, que ungirá os dois
primeiros reis de Israel. O propósito maior desses dois livros é descrever o
papel desse homem como agindo na difícil transição da teocracia para a
monarquia, como também de seu grande ofício profético nas páginas veterotestamentárias,
indo até João Batista, como é citado: “A lei e os profetas vigoraram até João;
desde esse tempo, vem sendo anunciado o evangelho do reino de Deus, e todo
homem se esforça por entrar nele” (Lc 16.16, ARA).
O doutor Stanley A.
Ellisen nos agracia com uma maravilhosa e propícia colocação ao tratar sobre o
objetivo dos dois livros de Samuel:
O objetivo dos livros
de Samuel é apresentar a história do desenvolvimento de Israel desde um estado
de anarquia até um estado de monarquia teocrática. Dá uma descrição religiosa
do crescimento da nação, mostrando a futilidade da tentativa de unificação e
crescimento nacional por esforço e liderança humanos, bem como o grande poder e
prestígio de uma nação fundada em princípios teocráticos sob um rei indicado
por Deus. Motivo dominante é a glória e o poder de uma nação que corresponde ao
Senhor Soberano.9
Nessa colocação,
percebemos que qualquer busca por crescimento, unificação por forças humanas,
sem a presença de Deus é inútil. Isso fala fortemente para nós, Igreja do
Senhor, que devemos priorizar o crescimento, o sucesso, pautado nos princípios
espirituais, jamais nos esquecendo de que sem Jesus nada podemos fazer (Jo
15.5).
Há, claro, uma
variedade de assuntos presentes em 1 e 2 Samuel, porém asseguramos que, no
tocante aos propósitos, destaca-se o que foi supracitado. Além disso, há
aqueles que podem ser listados como exemplo para nós no que tange à questão
espiritual e moral, os quais são resultado das experiências vividas pelos três
personagens principais dos livros.
Com Samuel, aprendemos
que o crescimento e a estabilidade do nosso ministério dependem de nosso servir
com obediência e sinceridade, ser verdadeiro no falar (1 Sm 3. 19-21). Com o
rei Saul, aprendemos que podemos estar vulneráveis a forças demoníacas, entre
outros transtornos, quando não confiamos em Deus, quando nos deixamos levar
pela sede de poder. Seu insucesso resultou da não obediência à voz divina (1 Sm
14.26). Já com Davi, aprendemos que podemos perder grandes privilégios ao nos
envolvermos com o pecado. Esse procedimento quase lhe custou a vida e o trono.
II. AUTORIA E
DATA
1. Autor e Título
Trataremos
primeiramente do autor do livro. É variável e questionável essa questão por
diversos estudiosos, todavia, no seu elemento interno, atribui-se a Samuel
parte do escrito do livro, dentre outros nomes que vêm depois dele, como Natã e
Gade (1 Sm 10.25; 1 Cr 29.29). Além desses, não há qualquer menção a outros
autores que pudessem ter escrito 1 e 2 Samuel.
Entendemos claramente
que no seu todo Samuel não escreveu os dois livros, pois sua morte se deu
quando o rei Saul ainda vivia. Ademais, o glorioso reinado de Davi não foi
presenciado por ele, mas é forte o argumento do Talmude ao afirmar que boa
parte dessa obra tenha sido escrita por esse profeta.
Podemos dizer que as
críticas volumosas sobre o autor de Samuel se devem a essas duas interfaces —
que Samuel morreu antes de Saul e que o segundo livro reserva seu conteúdo para
tratar especificamente sobre o reinado de Davi. Nesse cenário é que a alta crítica irá atuar, assegurando que esses livros tiveram diversas origens, daí o motivo
de se falar em múltipla autoria.
A alta crítica,
obviamente, fala das contradições, relatos que são duplicados, presentes nos
dois livros. Sendo assim, através da múltipla autoria, poderia se resolver
certas dificuldades que foram surgindo no decorrer do tempo, pois os autores se
apropriaram de algumas informações históricas dignas de confiança, como também
de informações orais, tradicionais. A alta crítica argumenta ainda que, de
Deuteronômio a Reis, aconteceu uma reescrita de tudo, o que se deu em 621 e 550
a.C., e que esses mesmos compiladores foram os responsáveis por escrever os
dois livros de 1 e 2 Samuel.
Existe também a teoria
das fontes informativas. Por meio delas se assevera que 1 e 2 Samuel nascem de
um misto de fontes diversas. Fala-se em dois ou três tipos delas. Para
Eissfeldt, 1 e 2 Samuel procedem das fontes informativas J, E e L, sendo que as
duas primeiras são oriundas das teorias J. E. D. P. S. Muitos estudiosos apelam
para essas fontes, afirmando que os livros bíblicos de Gênesis a Reis advieram
delas. No tocante à letra L, ela pode expressar ou tratar de informantes
leigos; também evidencia opiniões vulgares, sem qualquer pretensão teológica,
firmadas na Arca da Aliança. São muitos os que creem nesses tipos de teoria ou
fontes, razão pela qual ratificam que os livros de Gênesis a Reis foram
escritos fundamentados nelas.
Nesse parâmetro,
existem aqueles que questionam se algumas fontes alcançaram o conteúdo de 1 e 2
Samuel.12 Bentzen crê que as fontes J e E não fizeram parte do conteúdo de
Samuel. Albright descarta essas duas fontes como sendo recorridas para o
conteúdo ora apresentado. Para Segai, que também dispensa as fontes
informativas para Samuel, houve outras narrativas que se ajustaram, como sendo
independentes, no tocante a Samuel, Davi e Saul: a Arca.
Entra em cena também
sobre a questão de 1 e 2 Samuel a denominada Escola Tradicional Histórica. Seus
idealizadores propõem que as sagas no tocante à Arca da Aliança, dentre outros
assuntos, foram criadas. Daí se tem diversas crônicas sem uma harmonização
plena, mas desconexas, por isso remetem os escritos de 1 e 2 Samuel a tempos
posteriores, ou seja, o período pós-exílio.
Muitos dos que não creem
na inspiração bíblica, como deveriam, procuram desfazer dos escritos canônicos
e, para isso, apresentam suas evasivas. No tocante a Samuel, afirmam que são
meros conteúdos de tradições orais, ou simples fragmentos de novelas históricas
buscando exaltar certas personagens bíblicas, como, por exemplo, Davi, mas que,
na verdade, ainda que exista algum elemento histórico nesse particular, seria
mutável, variável, flutuante.
Podemos considerar o
esforço de muitos em compreender a autoria real dos livros de 1 e 2 Samuel,
todavia, entendemos que o melhor de tudo é ficar com o que realmente crônicas
relata (1 Cr 29.29) e que um compilador organizou — o que os três autores
fizeram, inclusive o ato de recorrer ao Livro dos Justos (2 Sm 1.18), que se
tratava de uma fonte histórica.
Há grande perigo em
seguir as teorias das fontes. Nesse sentido, Joyce está correto ao encetar em
seu livro três colocações sobre a questão das fontes. Ele é partidário do ponto
de vista de que perguntas quanto à composição dos livros poderiam ser feitas,
porém as fontes apresentadas por esses pesquisadores não se firmaram em dados
sólidos.
Podemos dizer que o
trabalho de Wellhausen e demais pesquisadores, pelos métodos de estudos
adotados, contribuíram grandemente na pesquisa envolvendo conhecimento
linguístico, literário e histórico, o que levou muitos a terem interesse por um
conhecimento mais profundo do texto das Escrituras Sagradas. O grande problema
nessa questão toda, porém, é que antes os estudiosos eruditos se rendiam
perante o texto, mas, doravante, o texto ficava sob seu controle, de maneira
que faziam o que pretendiam com ele. Assim, a rigor, a autoridade sobrenatural
foi descartada e valorizou-se mais o método científico, buscando sistematização
e crença por meio unicamente da razão.
A essência do que
consta nas Escrituras é que sua mensagem, por si mesma, é vivificante, conforme
escreveu o escritor aos Hebreus, ao afirmar que a Palavra de Deus é viva e
eficaz (Hb 4.12), Desse modo, o texto bíblico não pode se restringir ou ser
delimitado pelo seu leitor, antes, deve se render com temor a ele para poder
desfrutar das maravilhas ali presentes, clamando como o salmista: “Desvenda os
meus olhos, para que veja as maravilhas da tua lei” (SI 119.18).
2. Uma Descrição das
Fontes Diversas
Sabe-se que comumente
os judeus viam o Pentateuco como sendo de autoria de Moisés, pensamento que
também irá permear o ambiente cristão. Foi, porém, em 1670, quando um judeu de
nome Baruch Spinoza passou a dizer que na verdade o Pentateuco poderia ter
outro autor, no caso Esdras. Passou a surgir nessa particular teoria diversa
sobre esse assunto.
No comentário bíblico
editado por F. Davidson (O Novo Comentário da Bíblia), falando dessas críticas
das fontes e documentos, o autor descreve com precisão os males que tais fontes
causam. Por isso é que precisamos rejeitá-las.
Não vem a propósito
encetar uma discussão acerca dos princípios sobre os quais os críticos liberais
construíram uma teoria que lhes permite dividir o Velho Testamento por
escritores desconhecidos como J, E, P, D, bem assim como por muitos outros com
estes intimamente relacionados. Pensamos que esses críticos e suas escolas
construíram as suas teorias sobre alicerces errados. Muitas das suas suposições
basearam-se em ideias erradas e rejeitou-se sempre o elemento sobrenatural da
revelação. Procurou-se, sobretudo, fixar as fontes de origem numa data recente,
a fim de atribuir as elevadas concepções morais e espirituais do Velho
Testamento a naturais princípios de evolução, eliminado assim o elemento
sobrenatural ou, pelo menos, reduzindo-o ao mínimo. Para os críticos liberais,
os livros de Samuel comprovam, ainda mais que os do Pentateuco, a existência
sobre autores diversos.
Abaixo apresentaremos
alguns representantes das teorias documentárias, mas atentando para o que foi
dito acima: elas se fundamentam em ideias erradas, não consideram o aspecto
sobrenatural, espiritual, pontuando que as elevações morais e espirituais são
evolutivas.
Essas teorias se
originaram devido aos diversos nomes de Deus, os recursos literários. As fases
diversas dos cultos fizeram com que os críticos passassem a pensar que para
tudo isso existiam inúmeros documentos originais; dentre eles iremos apresentar
alguns.
O primeiro a se
mencionar é Jean Astruc (1753), que afirmou que era possível haver autoria
dupla para o Pentateuco, posto que ali estivessem presentes dois nomes de Deus:
o primeiro, Elohim, que passa a ter a fonte E.; o segundo, Yahweh, que tem a
fonte J., do nome Javé. Quem anda nessa mesma linha de pensamento é Johann
Eichorn (1780); para ele havia dois escritores para o Pentateuco, posto que os
estilos literários eram diferentes.
Diferentemente dos
dois nomes citados acima, aparece Alexander Geddes, também conhecido como W. M.
Wett (1792). Ele acreditava que no caso do livro de Gênesis não havia apenas um
autor, Moisés, mas que eram diversos, ao passo que alguém reuniu todos esses
documentos partindo dos mais primitivos.
Mais três nomes
merecem ser destacados aqui: Karl Graf, Hermann Hupfeld, Abraham Kuenen
(1853-69), os quais trabalharam na divisão de um documento E., buscando separar
um código denominado Sacerdotal P. Eles entenderam que Deuteronômio era o
último documento denominado D.
Por fim, vamos citar o
nome de Julius Wellhausen (1876). Por meio dele se deu a clássica organização
da teoria documentária em ordem JEDP. Esse homem apresentou datas tardias para
o Pentateuco, afirmando que fora escrito durante o exílio ou posterior a ele.
Para a compreensão
dessas letras, vamos especificar o sentido de cada uma delas:
Letra J. Trata de Javé. Nesse
caso, os escritos se deram no Reino do Sul (950 a.C.).
Letra E. Corresponde ao nome de
Deus — Elohim. Fazia parte do Reino do Norte (850 a.C.).
Letra D. Deuteronômio. Sua
época é antes de Josias (650 a.C.).
Letra P. Código Sacerdotal.
Nele constavam as tradições mosaicas, as genealogias sacerdotais. É pós-exílio,
tendo sua data em 525 a.C.
Com a apresentação
dessas fontes, destacamos que duas coisas aconteciam: primeiramente, a
inspiração divina é posta em questionamento, pois cada livro é produto das
invenções religiosas, e não palavras diretas do Senhor. A segunda é que os
acontecimentos presentes nos livros, ou seja, suas narrativas, não são confiáveis,
pois alguns acontecimentos não passam simplesmente de alguma coisa criada por
seguidores de suas próprias crendices ou religiosidade.
Agora trataremos da
data do livro, que é muito discutida, todavia, se levarmos em consideração que
quem os escreveu foi Samuel, Natã e Gade, tais escritos foram feitos no período
do reinado de Davi, ou tempos próximos. Na questão dessas datas, os
pesquisadores patinam grandemente. Eles apontam os capítulos 9-20 de 2 Samuel
como tendo sido escritos no século X a.C.; as demais porções foram escritas em
tempos posteriores, chegando até o período pós-cativeiro babilônico.
Apresentam-se dois
fortes argumentos para se confirmar que esse livro foi escrito em datas
anteriores: primeiro, a questão da promessa davídica, que, nesse caso, Davi a
teria imposto para preservar sua dinastia, o que também preservaria o reinado
de Salomão, seu filho, e que isso teria que ser no limiar do seu reinado, ainda
que da parte de Judá aceitasse Davi como rei, as demais não. O outro argumento está
no texto de 1 Samuel 27.6, afirmando que Ziclague pertence ao rei de Judá;
assim ficava provado que o livro de Samuel fora escrito no período da monarquia
dividida, depois do reinado de Salomão. Para outros, porém, essas palavras
foram colocadas tempos depois. Diante de todos esses pontos discursivos, a
datação apresentada para os livros é a seguinte: 970 a 722 a.C.
3. A Situação
Espiritual e Política de Israel
O panorama que é
descrito logo no preâmbulo do capítulo 1 de Samuel é um quadro de letargia espiritual
grandiosa, mas não para por aí. Lendo o capítulo 7 de 1 Samuel, a idolatria,
que era proibida terminantemente por Deus, estava sendo praticada pelo povo de
Deus de forma descabida. Outra coisa forte no meio israelita era a imoralidade,
a qual tinha atingido os dois sacerdotes filhos de Eli, que serviam no sacerdócio
em Siló. O coração deles era dominado pela luxúria, cobiça, dentre outros
pecados. No tocante a Eli, Deus não o repreendeu por qualquer falha no seu
sacerdócio; antes seu pecado era devido à falta de disciplina para com os seus
filhos, razão pela qual sofreria as consequências divinas, inclusive a perda do
sacerdócio (1 Sm 2.29,33).
É preciso entender que
não somente Eli e seus filhos estavam vivendo essa lassidão espiritual e moral,
mas também o povo de Deus estava atolado no lamaçal do pecado e da imoralidade.
Muitos estavam vivendo dissimuladamente uma religião de aparência, pois
praticavam os mais absurdos atos imorais e idolátricos. Por tudo isso, era
inevitável o julgamento da parte divina, que viria através dos filisteus. Por
causa desses pecados, eles perderam a Arca. Eli e seus filhos faleceram de
maneira dramática.
Podemos dizer que o
fracasso político de Israel derivava também de sua situação espiritual, no
século 11 a.C.; percebem-se lideranças fracas, divisões presentes, uma anarquia
total, tudo por causa da falta de um grande líder. Juízes confirma isso quando
começa falando da morte de Josué, que, depois dele, a nação se fragmentou,
ficou sem liderança forte (Jz 1.1), razão pela qual surgiram os líderes
emergentes, ou seja, os juízes, por vezes indicados por Deus, mas, em alguns
casos, pelos próprios sacerdotes.
Vale dizer que, fora
esses problemas, Israel enfrentava as ferrenhas perseguições dos seus
opositores, com destaque, claro, para os filisteus da região sudoeste. Havia
também os vizinhos consanguíneos. Foram os filisteus que os derrotaram e
tomaram a Arca da Aliança, mas eles também dominaram e se apossaram de boa
parte da Jordânia Ocidental.
No tempo do reinado de
Davi, a questão do estado político, especialmente da união, é bem problemática,
primeiramente porque ele terá que enfrentar oposição do lado de dentro e, mais
adiante, também do lado de fora, mas, sendo ele o líder escolhido por Deus,
grande guerreiro, sempre dependendo do auxílio divino, paulatinamente foi
lutando e colocando as coisas no devido lugar. Não demorou para que a nação
começasse a ter grande respeito e crescimento político.
Como um líder nato e
selecionado por Deus, Davi, com sua liderança forte, conseguirá derrotar e
expulsar os filisteus; não somente eles, mas a força de Edom, Moabe, Síria,
Amom, dentre esses muitos se tomaram subservientes a Davi; outros ainda irão
fazer com ele pacto de paz. Mais uma vez destacamos que tudo isso aconteceu
porque Davi sempre buscou o socorro em Deus, pois é Ele quem estabelece reis
(Dn 2.21).
III. A TEOLOGIA
NO LIVRO DE SAMUEL
1. O Historicismo
Profético
Na questão do
historicismo profético, não se atrelando ao lado histórico profético como
fonte, o que se pretende enunciar é que os acontecimentos envolvendo os três
capítulos mais destacados dos livros de Samuel, os quais assinalam a grande
mudança na sua estrutura espiritual e social, não transcorreram por mera
casualidade do destino, mas se desenrolaram sob a égide divina, por meio do
peso das palavras proféticas, as quais são definidas como pressuposições
teológicas.
Em cada momento vivido
pelo povo de Deus, Israel, o Senhor estava no controle de tudo — é isso o que
se pode ver na análise dos três capítulos que revelam esse lado teológico. O
conteúdo dos livros de Samuel é histórico, mas sabe-se que ambos têm um peso
teológico muito forte, que diversos autores salientam como três pontos
principais:
(1) a soberania divina;
(2) o pecado; e
(3) o pacto davídico.
Joyce G. Baldwin,
falando do ponto de vista teológico do livro, assegura:
Nos livros de Samuel,
há três capítulos que se destacam como marcas, caracterizados por sua
interpretação das mudanças históricas que estavam ocorrendo na estrutura de
liderança de Israel. São eles: 1 Samuel 7, 1 Samuel 12 e 2 Samuel 7. Isso não
quer dizer que o restante dos livros não seja teológico, pois pressuposições
teológicas permeiam o todo; contudo, nesses capítulos um profeta expõe a
palavra divina para cada etapa da crise que o povo de Deus estava
atravessando.14
No que tange à questão
do aspecto teológico presente nos livros de 1 e 2 Samuel, é preciso entender
que existem elementos nas Escrituras que não podem ser apresentados ou
entendidos somente em um contexto histórico, físico, mas somente em Deus, o
autor da Bíblia.
A teologia desses dois
livros, segundo Roy B. Zuck,16 está em dois níveis: no dos acontecimentos
envolvendo a vida de Samuel, que é um jovem que aprende na casa do Senhor,
torna-se um juiz de fé, e também no de Davi e Saul, revelando o lado humano e o
tratamento divino com cada um, pois ainda que apresentassem pecados, erros,
falhas, Deus estava controlando cada acontecimento para concretizar os seus
propósitos.
Primeiramente temos
que entender no texto que é descrito tanto a vontade soberana como a vontade
permissiva da parte do Senhor. É claro que em momento algum Deus ficou feliz
com a atitude do seu povo em querer um rei como as demais nações, inclusive de
ele lutar suas batalhas, posto que desse modo estavam desprezando a vontade
soberana do Senhor (1 Sm 8.7). Deus permitiu que Israel tivesse um rei,
inclusive posteriormente afirma que o abençoaria, mesmo tendo o povo feito a
escolha, no caso Saul (1 Sm 9.16).
Uma leitura precisa do
texto mostra que Deus deu oportunidade a Saul para que tivesse condições de
fortalecer o seu reino, inclusive a ênfase é bem clara: “para sempre” (1 Sm
13.13). O que leva Saul a ser rejeitado é o seu próprio pecado. Não há qualquer
apontamento de Samuel em afirmar que a perda da dinastia de Saul era porque ele
fora predestinado, mas, sim, porque não procedera como deveria. Desse modo ele
é punido por seus pecados.
Podemos entender que
de antemão Deus sabia e previu tudo o que aconteceria com Saul, mas, como
disse, Ele deixou acontecer para evidenciar ao povo que um rei escolhido apenas
pela vontade humana é muito prejudicial. O que deve se levar em consideração na
questão de Saul é que envolvia também o lado da responsabilidade humana.
Creio que você tenha
percebido que o primeiro aspecto teológico dos livros de 1 e 2 Samuel é em
relação à soberania de Deus. O segundo é quanto ao pecado cometido pelos
personagens mais influentes do livro — Eli, Samuel, Davi, Saul. A princípio são
evidenciados os pecados mais dissolutos e abusivos cometidos pelos filhos de
Eli na condição de sacerdotes (1 Sm 2.13-17; 3.13), os quais não são, em
momento algum, penalizados pelo pai. Em se tratando de Samuel, a causa que
levará o povo a pedir um novo rei deriva de pecados cometidos por seus filhos,
o que acontecerá de fato (1 Sm 8.5).
Observe que a ênfase
envolvendo cada um desses personagens destaca o lado humano, como a
vulnerabilidade para o pecado, fosse quem fosse. Saul, por exemplo, sendo
escolhido, separado para ser rei, não demorará para mostrar seu lado
pecaminoso. Ele será um rebelde contumaz, não obedecendo à voz de Deus, indo às
mais baixas e miseráveis condições, pois espíritos malignos o dominam. Ele
manifestará uma inveja doentia, que, para alguns, é evidência de algum tipo de
demência precoce, mas que, na verdade, era pecado mesmo, pois quem peca vive em
situações as mais deploráveis.
A condição degradante
de Saul é vista no caso de ele buscar orientação com a feiticeira de En-Dor (1
Sm 28.6). Por não ter mais resposta de Deus por causa de sua rebeldia, ele
apela para esse vergonhoso recurso. A condição espiritual e moral do rei Saul
era a mais triste. Esse rei teve um fim triste, tudo porque não procurou andar
nos caminhos verdadeiros do Senhor.
É severa a maneira
como as Escrituras Sagradas abordam os degradantes atos pecaminosos cometidos
por Davi, um homem que fora escolhido e que era do coração de Deus, que tinha
uma grande paixão pela presença de Deus, que realmente expressa grande fé nEle.
Não se pode apagar os momentos cintilantes da vida desse grande rei de Israel,
mas não se pode ocultar o seu duplo pecado, os quais aconteceram de modo
covarde: adultério e homicídio — resultado da não vigilância, do descuido.
Deus usou de
misericórdia e graça para com Davi, perdoando seus pecados quando foram
confessados (2 Sm 12.13), porém as consequências foram sérias e inevitáveis:
ele teve que arcar com todas e de maneira caríssima.
O que aprendemos com os
relatos bíblicos envolvendo esses personagens que foram escolhidos por Deus é
que cada um deles era humano, cometia pecados, falhas, errava, e, como líderes,
não eram perfeitos. Quando, entretanto, procuravam se voltar para Deus com
sincero coração, prontamente eram abençoados. Assim, ainda que venhamos a
falhar, podemos nos voltar para Deus com um coração sincero e quebrantado — Ele
não nos abandonará.
Frente a todos os
pecados e erros de Davi, Deus o perdoou, e não somente isso, fez com ele um
pacto. Segundo alguns biblistas, esse pacto implementou algo a mais àquilo que
havia sido dito no pacto abraâmico. Podemos considerar três pontos fortes nesse
pacto davídico:
(1) linhagem eterna;
(2) firmeza no trono; e
(3) um reino
eterno.
É bom levar em consideração
que, no tocante ao governo eterno, mais uma vez dizemos que se tratava de Jesus
Cristo, o qual descenderia da casa de Davi. Por isso, nesse sentido, Champlin
escreve:
A Davi foi prometida
uma linhagem permanente, um trono firme e um reino perpétuo. O direito de
governar Israel para sempre caberia a um de seus descendentes, promessa que
antecipa e garante o reinado eterno do Senhor Jesus Cristo, o Filho maior de
Davi. A fidelidade e o amor constante de Deus por Seu servo Davi podem ser
vistos no fato de que Ele o perdoou graciosamente de seu grave pecado duplo:
adultério e homicídio.17
O rei Davi em tudo
reconheceu a bondade divina direcionada à sua pessoa, por isso agradece com
louvor ao Deus bendito, entendendo que tudo o que tinha alcançado vinha dEle.
Ademais, ele se sente ainda mais feliz por causa da promessa que Deus fez para
com a sua casa, ou seja, o pacto davídico (2 Sm 23.1).
Autor: Pr. Osiel Gomes